"Um bruxo se torna menos bruxo por admirar algo na religião que o perseguiu?"

 

Hoje, decidi interromper a programação habitual do blog e escrever este texto fora do dia agendado para publicações. Algumas perguntas, quando chegam, carregam tamanha potência que pedem resposta imediata — não apenas pela curiosidade que despertam, mas pela magnitude simbólica e espiritual que evocam.

Uma seguidora me perguntou:
“Um bruxo se torna menos bruxo por admirar algo na tal religião que o perseguiu anos atrás?”

Essa pergunta me atravessou profundamente. Porque não é apenas uma dúvida individual — é um eco coletivo, ancestral. Um sussurro que vem das fogueiras, dos exílios, dos altares reconstruídos, das memórias guardadas no sangue e na alma de tantas e tantos de nós.

Esse texto nasce como um ato de escuta e de cura. Que ele te toque com a mesma força com que me tocou ao escrevê-lo.




Essa pergunta ecoa fundo no coração da nossa história ancestral.

A resposta, na minha visão, é NÃO. Um bruxo não se torna menos bruxo por admirar algo — seja um símbolo, um ensinamento, uma prática — mesmo que venha de uma tradição que, historicamente, tenha perseguido os caminhos da bruxaria.

A bruxaria verdadeira é livre, selvagem e sábia. Ela nasce da escuta profunda da alma e da Terra, e não de dogmas. Ela transcende oposições e absorve sabedoria de onde houver vida, verdade e beleza. Admirar algo de outra religião, mesmo que tenha sido usada como instrumento de opressão no passado, não é traição — é discernimento.

É possível honrar sua linhagem de bruxa e, ao mesmo tempo, reconhecer o valor de um gesto de amor, de uma figura simbólica, ou até de uma oração, mesmo que venha de uma tradição diferente.


Isso não apaga as feridas da História — mas mostra que você está suficientemente consciente para curar sem repetir o ciclo de exclusão.

Bruxaria é sobre liberdade de alma. E um coração livre pode sim, com maturidade, admirar o que é belo, mesmo em meio ao que foi sombrio.

 

Do ponto de vista da psicologia arquetípica e junguiana, essa pergunta nos convida a olhar para a Sombra coletiva e pessoal. A perseguição das bruxas foi uma manifestação do inconsciente coletivo cristão projetando suas próprias sombras — o feminino selvagem, o poder intuitivo, o corpo livre, a sabedoria ancestral — sobre mulheres e homens que viviam em conexão com a natureza e o invisível.

Admirar algo que venha de uma religião que um dia perseguiu a bruxaria não é uma traição, mas pode ser um ato de integração. Quando uma bruxa reconhece, com consciência, algo de belo ou verdadeiro dentro do catolicismo, por exemplo — uma imagem, uma oração, um rito — ela está, na verdade, ressignificando e alquimizando.

É um movimento de individuação: integrar opostos, reconhecer que luz e sombra existem em todas as tradições, e que o símbolo espiritual é sempre mais profundo do que a estrutura religiosa que o contém.

Na visão junguiana, a verdadeira maturidade espiritual surge quando deixamos de nos identificar apenas com a Persona (nossa imagem social) e passamos a dialogar com o inconsciente — inclusive reconhecendo que há sabedoria até mesmo naquilo que antes rejeitávamos por dor ou defesa.

Portanto, quando um bruxo admira algo na tradição que o feriu, ele não está se tornando "menos" bruxo — está, na verdade, alargando sua alma. Está saindo do trauma ancestral e caminhando rumo à liberdade interior, onde o Sagrado pode ser visto em muitos rostos, nomes e linguagens.

 

Vamos olhar com cuidado e profundidade para o que pode levar uma pessoa a pensar que é "menos bruxo" por admirar algo fora ou até dentro de uma tradição que a feriu:

 

1. Ferida Arquetípica da Bruxa

Existe uma memória ancestral gravada no inconsciente coletivo das bruxas — uma ferida ligada à perseguição, à exclusão, ao exílio. Muitos bruxos e bruxas de hoje carregam, mesmo sem saber, esse medo da invalidade, da traição, de “serem menos” se não se manterem radicalmente fora das estruturas que os oprimiram.

Essa ferida pode gerar a necessidade inconsciente de pureza ideológica ou identitária, como um escudo contra a dor da rejeição ancestral.

 

2. Polarização e identidade em formação

Quando alguém está construindo ou reconstruindo sua identidade espiritual, pode surgir uma tendência à rigidez e ao "nós contra eles". É um estágio comum no desenvolvimento da consciência, especialmente quando se está saindo de uma estrutura dogmática (como religiões institucionais) e entrando no caminho da bruxaria, que é muitas vezes um retorno ao Eu.

Neste estágio, admirar algo da tradição anterior pode parecer uma "traição" ao novo caminho que a pessoa está tentando validar para si mesma.

 

3. Sombra projetada no "inimigo"

Na psicologia junguiana, quando projetamos nossa Sombra em algo (como a religião que nos feriu), perdemos a capacidade de ver nuances. Tudo ali vira o mal, o opressor, o inimigo. E então, se algo ali nos toca ou encanta, vem o conflito interno: “como posso me sentir atraído por isso?”

Esse pensamento cria culpa, confusão, e a sensação de "estar sendo menos fiel à minha verdade", quando, na verdade, é apenas a Sombra pedindo integração.

 

4. Pressão do meio espiritual ou esotérico

Em alguns círculos da bruxaria ou espiritualidade alternativa, pode haver uma cobrança velada de "coerência absoluta", como se o bruxo verdadeiro tivesse que romper com tudo o que cheire a religião tradicional. Isso é uma forma de dogmatismo invertido — e cria uma nova prisão.

Essa pressão externa pode reforçar o sentimento de inadequação: “se eu admiro tal símbolo cristão, será que não sou bruxa o suficiente?”

 

Integração: o caminho da alma livre

Na verdade, um bruxo maduro é aquele que reconhece a verdade onde ela vibra, sem se prender a fronteiras religiosas ou ideológicas. A verdadeira liberdade espiritual é aquela que não precisa de muros para se proteger, porque já integrou suas dores, sua história, sua Sombra.

Admirar algo fora da sua tradição não enfraquece sua magia. Refina. Expande. Cura.




São Cipriano como arquétipo de reconciliação entre caminhos

Historicamente, Cipriano de Antioquia foi um mago pagão, versado em necromancia e ciências ocultas, que mais tarde teria se convertido ao cristianismo — ou, segundo algumas versões, incorporado o Cristo como mais uma força mágica dentro do seu sistema. Em algumas vertentes da tradição esotérica, ele nunca deixou de ser mago, apenas passou a atuar sob outros símbolos.

Assim, São Cipriano não é só um santo — é um símbolo da interseção entre duas realidades aparentemente opostas.

A figura de Cipriano mostra que é possível transitar entre mundos espirituais sem perder a essência. Ele é amado tanto por devotos cristãos quanto por praticantes de feitiçaria — o que nos leva diretamente à resposta para a pergunta da seguidora:

Admirar algo de uma religião que te feriu não te torna menos bruxa — pode te tornar mais consciente, mais reconciliada, mais inteira.

Cipriano representa isso: um ser mágico que não negou seu passado ao se aproximar do novo. Ele o transmutou.

Sob a ótica junguiana, Cipriano pode ser visto como um símbolo da Sombra que foi integrada. Ele representa o que é temido ou rejeitado (a bruxaria, o ocultismo) sendo acolhido dentro de uma estrutura que antes o combatia.

A sua história ecoa o próprio processo da individuação, onde os opostos se encontram e se reconciliam. Por isso, ele pode servir de espelho para os bruxos que sentem culpa ou dúvida ao se encantar por elementos de tradições antigas e feridas.

Talvez seja ele quem nos sussurra que a verdadeira força não está em negar o que um dia nos feriu, mas em recolher dali a centelha do sagrado que sobreviveu à dor.

No fim das contas, o caminho da bruxa — e do bruxo — não é feito de rótulos fixos ou fidelidades cegas. Ele é tecido na coragem de olhar para dentro, de fazer as pazes com a própria história e de recolher a alma em todos os lugares onde ela foi exilada.

Se algo de uma tradição que te feriu te toca hoje com beleza, verdade ou luz — permita-se sentir. Isso não te faz menos bruxa.
Talvez te faça mais inteira.

Bruxaria é liberdade. E a alma livre sabe reconhecer o Sagrado, mesmo quando ele aparece vestido com outras cores.

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Com carinho,
Mariana Póvoa Cavalcante
Véu da Noite


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