Entre o Sono e o Despertar: o portal encantado nos contos de fadas
O sono, nos contos de fadas, não é mera pausa — é passagem. Um véu tênue que separa o mundo ordinário do extraordinário, o conhecido do misterioso, o concreto do simbólico. Quando uma personagem adormece, algo mais profundo está sendo invocado: uma travessia da consciência para além dos limites do eu. Nesse limiar onírico, habita o inconsciente, os desejos não ditos, as sombras e os encantamentos que desafiam a lógica diurna.
Coraline, por exemplo, adormece em sua casa real — pálida, indiferente, sem cor — e desperta com o som sutil de um ratinho, símbolo da travessura e do segredo. Ao segui-lo, ela encontra uma pequena porta escondida na parede, que se abre para um túnel estreito. Há algo iniciático nessa travessia: ela engatinha, atravessa, e ao emergir, chega a uma realidade paralela onde tudo parece melhor. A comida tem gosto, os pais sorriem, os brinquedos falam. Mas há um preço. Como todo encantamento, essa perfeição é uma ilusão. Coraline dorme e acorda mais uma vez — e está de volta ao mundo real, o mundo imperfeito, mas também o único onde é possível crescer verdadeiramente.
Alice, por sua vez, cai no sono e despenca por uma toca de coelho. Um abismo. Um mergulho repentino que rompe as regras do tempo e do espaço. Ao passar por uma porta diminuta — também ela — adentra um mundo sem sentido lógico, mas pleno de sentido simbólico. Lá, as regras sociais são subvertidas, a identidade é fluida, e o absurdo reina como espelho distorcido da realidade. Ao despertar, Alice retorna ao seu mundo, mas nunca da mesma forma. Ela viu demais. Viveu demais. Sonhou demais. O retorno ao mundo desperto carrega sempre o sabor do irreversível.
Esses sonhos não são fugas. São convites à jornada interior. No mundo real, Coraline sente-se ignorada, incompreendida, solitária. Alice, entediada, não encontra sentido nas obrigações de uma menina bem-comportada da era vitoriana. Ambas, ao adormecerem, encontram mundos onde suas vozes ganham força, onde o impossível se torna palpável. Mas o encantamento desses mundos alternativos não é resposta final — é provocação. O fantástico revela o que falta, mas também o que precisa ser transformado no real.
A pequena porta, o túnel, a queda: símbolos da iniciação. O sono: rito de passagem. E o despertar: retorno com a consciência expandida.
Há sempre algo que se morre nesses sonhos, para que algo possa renascer ao despertar. O mundo das fantasias seduz com sua promessa de plenitude, mas é no mundo real — com todas as suas falhas — que se vive de fato.
Talvez, então, o sono nos contos de fadas não seja um simples apagar dos sentidos, mas o mais profundo dos chamamentos: aquele que nos convida a atravessar, sonhar, ver com outros olhos… e voltar transformados.
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